Desde que a família tradicional advinda do casamento entre um homem e uma mulher deixou de ser o único modelo familiar, a figura do enteado ganhou importância social e jurídica, principalmente porque é comum na atual dinâmica dos relacionamentos o surgimento de novas famílias pós-divórcio ou dissolução de união estável. Essas novas entidades, muitas vezes formadas por casais que já tinham filho da relação anterior, são denominadas de famílias reconstituídas, pluriparental, recompostas ou mosaicos.
Para se ter uma ideia, atualmente não existe regulamentação sobre a adoção do filho exclusivo de um, pelo novo cônjuge ou companheiro, sem a necessidade de precedente destituição do poder familiar do genitor (§1º do art. 41 da Lei nº. 8.069/1990), como tampouco acerca de eventuais direitos, como à pensão alimentícia, à autoridade parental, à guarda e à visitação, e, por fim, à herança em relação aquele que foi criado como próprio filho, mas não possui nenhum vínculo consanguíneo com seu padrasto ou madrasta.
Além do parentesco por afinidade previsto na Lei Civil, da viabilidade de o enteado ser considerado dependente no imposto de renda (Lei nº.9.250/95, art. 35) e beneficiário da previdência social (Lei nº. 8.213/91, art. 14, §2º), a única regra criada em prol das famílias mosaicos foi a possibilidade de o enteado ou a enteada acrescentar o patronímico do padrasto ou madrasta. Esta novidade surgiu com a Lei nº. 11.924/2009 que alterou o art. 57 da Lei de Registros Públicos, ao inserir o §8º, cujo dispositivo prevê que: “O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família”.
Apesar de tímido, esse foi um importante avanço, pois além de formalizar a integração do enteado na nova família, evita o antigo constrangimento sofrido pelos filhos da relação anterior ante seus meios-irmãos por não possuírem o mesmo sobrenome.
O escasso avanço e a discriminação do legislador vêm sendo superado pela doutrina e pela jurisprudência, com base na socioafetividade, pois quando afins estabelecem a paternidade ou a maternidade por vínculos de afeto, é possível reconhecer os direitos não previstos ou até mesmo vedados por lei, como por exemplo, os alimentos, cujo direito a codificação prevê ser somente devidos entre parentes na linha reta (ascendente e descendente) sem limitação de graus, e na linha colateral até o segundo grau (CC, arts. 1.694 e 1.697), excluindo, portanto a hipótese de pleitear alimentos para tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos, tal como excluído deste rol qualquer parente por afinidade. (Farias e Rosenvald, 2013: 626)
Muito embora a filiação socioafetiva esteja apenas indiretamente prevista no art. 1.593 da Lei Civil, atualmente se trata da espécie mais sólida e prevalente de vínculo parental, já que lastreada nos laços de afeto e na dignidade humana dos entes envolvidos nessa relação, superando no mais das vezes a descendência biológica ou registral, pois como ressalta João Batista Villela: “A cosanguinidade tem, de fato e de direito, um papel absolutamente secundário na configuração da paternidade. Não é a derivação bioquímica que aponta para a figura do pai, senão o amor, o desvelo, o serviço com que alguém se entrega ao bem da criança.” (Villela, 1995: 95).
Esse novo vetor somado à solidariedade familiar motivou a Juíza catarinense Adriana Bertoncini, em pioneira decisão, fixar alimentos em favor de uma enteada que ao longo de 10 anos era sustentada pelo padrasto e com ele tinha estabelecido uma espécie de vínculo afetivo (TJSC, Comarca de São José, 1ª Vara de Direito de Família).
Não obstante parte da doutrina sustente a inviabilidade da obrigação alimentar do padrasto, em virtude do descabimento legal da dupla paternidade, certa é a posição que privilegia a proteção integral da criança e do adolescente, pois como escreve Rolf Madaleno, apesar de não haver vínculo de filiação entre padrasto e enteado, “não há como ignorar que essa criança deixará de frequentar a escola e de desfrutar do modo de vida que só será legalmente assegurado aos seus meios-irmãos, em decorrência da pensão que irão receber como filhos biológicos do padrasto.” (Madaleno, 2013; 13). Não devendo prevalecer nessas situações, o argumento de que o padrasto estaria sendo punido “por que bem tratou, porque propiciou algumas benesses para o enteado ou enteada” (Silva, 2013), porquanto certeiro que este raciocínio caracterizaria o vedado comportamento contraditório corolário do princípio da boa-fé objetiva, em prol do direito à vida e dignidade de uma criança.
Logo, para preencher este hiato legal, a melhor solução é a modificação legislativa para inserir o enteado como beneficiário de alimentos, desde que, no momento da ruptura do novo relacionamento ou da morte de seu genitor esteja sob a responsabilidade do padrasto ou madrasta, ou ainda, quando seus parentes mais próximos não tiverem possibilidades financeiras de arcar integralmente com os custos de vida, tal como prevê a legislação argentina nos arts. 363 e 368 e o Código Civil português, em seu art. 2009.
A mesma lógica deve ser usada para aplicação do direito à guarda e visitas, em eventual separação do novo casal, pois os laços afetivos, assim como as consequências jurídicas tendem a persistir após os rompimentos amorosos, devendo ser preservado o convívio familiar, seja com os genitores biológicos, seja com os padrastos ou madrastas, tal como procedeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no julgamento da Apelação Cível nº. 70037876554, da 8ª Câmara Cível, em 20 de setembro de 2009.
No tocante à herança, em respeito à socioafetividade e ao princípio universal de igualdade entre todos os filhos, justo seria a divisão igualitária entre os descendentes, em cujo rol deve ser inserido o enteado, quando de fato for criado como filho pelo novo cônjuge ou companheiro de seu genitor biológico, descartando, por óbvio, pelos mesmos princípios a possibilidade de este herdeiro ser beneficiado com a herança do outro ascendente. Contudo, em se tratando de enteado que mantém ligação afetiva com ambos genitores biológicos, correto que continue o testamento sendo o único instrumento para beneficiá-lo com a herança, tendo em vista que nestes casos, não há uma substituição da autoridade parental, mas um compartilhamento, que aliás, deve ser o objeto de estudo para a correta elaboração dos direitos das famílias reconstituídas, pois além de ser uma situação recorrente na sociedade atual que clama por tutela estatal, a possibilidade da divisão do poder familiar junto ao afeto, seguramente, formarão a base sólida deste instituto.
Em que pese essa questão suscite debate, não há como negar que o compartilhamento das funções parentais tem total trânsito no ordenamento jurídico brasileiro, pois além de a família moderna ter sua gênese na socioafetividade, o esforço envidado pela doutrina é pela regulamentação da comunicação do exercício da responsabilidade parental, e não de sua titularidade, cujos conceitos, segundo Rolf Madaleno, apesar de distintos, “enuviam a compreensão de que pode existir mais de uma pessoa no exercício da responsabilidade parental, tal como sucede com relação ao padrasto ou à madrasta que têm um dever de zelar pelo hígido desenvolvimento da formação moral e psíquica do enteado que está sob sua vigilância direta (…)” (Madaleno, 2013:12).
A manutenção do poder familiar na ruptura do casamento e da união estável (CC, art. 1.636), muito embora aparente a incomunicabilidade do exercício parental, igualmente não impede tal compartilhamento, tanto que na prática é frequente a participação dos padrastos e madrastas na educação, no sustento e no desenvolvimento físico e psíquico do enteado, sem contar quando o consenso e a inteligente harmonia entre os adultos permite a divisão das responsabilidades diárias das crianças e dos adolescentes. Portanto, acostumada a sociedade com esta sistemática familiar, necessária a sua regulamentação, não para desconsiderar ou substituir o outro genitor, mas para acrescentar a responsabilidade parental desses parentes afins, determinando além dos direitos e deveres decorrentes de eventual rompimento amoroso do novo casal, as regras de condutas durante estas relações, tal como previsto para as tradicionais famílias consanguíneas, preenchendo, desta forma, o vácuo e a deficiência legal causados pelo preconceito jurídico e social por esta tão comum entidade familiar.
Remissão: enteado, poder familiar, alimentos, patronímico, herança, guarda, visitas e direitos e deveres.
Referências: FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito de Família. 5ª ed., Bahia:Editora JusPodivm, 2013.
MADALENO, Rolf Hanssen. Curso de Direito de Família. 5ª Ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013.
SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Obrigação alimentar decorrente de paternidade socioafetiva: posição contrária. Fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/obrigacao-alimentar-decorrente–de-paternidade-socioafetiva–posicao-contraria/10146. Acesso em: 22 de agosto de 2014.
VILLELA, João Baptista. Repensando o Direito de Família. Cadernos jurídicos, São Paulo, v.3, n. 7, jan./fev. 2002.
Marina Pacheco Cardoso Dinamarco, advogada, especialista em Direito de Família pela PUC/RS, mestre na PUC/SP, integrante da diretoria do IBDFAM-RS.
[1] Este parentesco por afinidade previsto no art. 1.595 do Código Civil, é limitado aos ascendentes, descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro, não extinguindo com a dissolução do casamento ou da união estável, somente os vínculos com os parentes de linha reta.